terça-feira, 14 de julho de 2015

O ATAQUE FINANCEIRO À GRÉCIA– Para onde vamos a partir daqui?

13 julho 2015, Resistir.info resistir.info (Portugal)

por Michael Hudson

O maior problema financeiro que dilacerou economias ao longo do século passado estava mais do lado da dívida oficial inter-governamental do que do da dívida do sector privado. Eis porque a economia global de hoje enfrenta uma ruptura semelhante à de 1929-31, quando ficou evidente que o volume de dívidas oficiais inter-governamentais não podia ser reembolsado. O Tratado de Versalhes impôs reparações impossíveis à Alemanha e os Estados Unidos impuseram exigências igualmente destrutivas aos Aliados quanto ao pagamento de dívidas [pelo fornecimento] de armas utilizadas na I Guerra Mundial. [1]

Há procedimentos legais bem estabelecidos para enfrentar bancarrotas corporativas e pessoais. Tribunais cancelam parcialmente (write down) dívidas de pessoas e de negócios tanto sob o procedimento "devedor no controle" como pelo arresto e os credores assumem uma perda sobre empréstimos que correram mal. A bancarrota pessoal permite a indivíduos retomarem a vida.

É muito mais difícil cancelar parcialmente dívidas possuídas ou garantidas por governos. A dívida de empréstimos a estudantes dos EUA não pode ser anulada, mas permanece de modo a impedir os diplomados de ganharem o suficiente para terem um salário líquido (depois de o serviço da dívida e a retenção na fonte da contribuição para a Segurança Social ser deduzida dos seus cheques de
pagamento) de modo a casarem, constituírem família e comprarem casas para si próprios. Só os bancos obtêm salvamentos (bailed out), agora que se tornaram efectivamente os planeadores centrais da economia.

Acima de tudo, não há estrutura legal para cancelamentos parciais de dívidas ao FMI, BCE ou governos credores europeus e americanos. Desde a década de 1960 nações inteiras foram sujeitas à austeridade e contracção económica que torna cada vez menos possível livrarem-se da dívida. Governos são implacáveis e o FMI e BCE actuam por conta de bancos e possuidores de títulos – e estão ideologicamente capturados pelos combatentes financeiros do anti-trabalho e anti-governo.

O resultado não é a "economia de mercado livre" que pretende ser, nem a regra da racionalidade económica. Uma genuína economia de mercado reconheceria a realidade financeira e cancelaria dívidas parcialmente de acordo com a capacidade de serem pagas, mas a dívida inter-governamental cancela mercados e recusa-se a reconhecer a necessidade de um Quadro Limpo (Clean Slate). A teoria condutora de hoje – apoiada pela teoria económica lixo do monetarismo – é que dívidas de qualquer dimensão podem ser pagas, simplesmente pela redução dos salários e padrões de vida do trabalho mais a liquidação do domínio público de uma nação – sua terra, reservas de petróleo e gás, minerais e distribuição de água, estradas e sistemas de transporte, centrais eléctricas e sistemas de esgotos, além de todas as formas de infraestrutura pública.

Imposta pelo monopólio das instituições financeiras inter-governamentais – o FMI, BCE, Tesouro dos EUA e assim por diante – a alavancagem financeira do credor tornou-se o novo modo de travar a guerra no século XXI. É tão devastador quanto à guerra militar no seu efeito sobre a população: elevação das taxas de suicídio, tempos de vida mais curtos e emigração daqueles em idade de tropa que sempre foram as principais baixas de guerra: adultos jovens. Ao invés de serem conscritos no exército para combaterem inimigos estrangeiros, eles são afastados dos seus lares para procurarem trabalho no exterior. O que costumava ser um êxodo rural da terra para as cidades desde o século XVII é agora um "êxodo do devedor" dos países cujos governos devem somas impagavelmente altas a governos credores e aos bancos e possuidores de títulos em cujo benefício impuseram sua política.

Ao mesmo tempo que empurra a economia do mundo para um estado de guerra internacional, a alta finança trava também uma guerra contra o trabalho – e em última análise contra governos e portanto contra a democracia. A política do BCE neste ano tem sido brutal em relação à Grécia: "Se não reeleger um partido ou coligação de direita, destruiremos o seu sistema bancário. Se não vender a preço de saldo o seu domínio público tornaremos a vida ainda mais difícil para si".

Não é de admirar que o ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis tenha chamado a posição negocial da Troika de "terrorismo financeiro". A sua ideia de "negociação" é a rendição. Eles são inflexíveis. Instituições credoras oficiais ameaçam isolar, sancionar e destruir economias inteiras, incluindo sua indústria bem como o trabalho. Isto transforma a guerra de classe do século XIX num colapso puramente destrutivo.

Esta é a grande diferença entre os dias de hoje e 1929-31. Naquele tempo, os principais governos do mundo finalmente reconheceram que dívidas não podiam ser pagas e suspenderam reparações alemãs e dívidas inter-aliados. A situação de hoje está a utilizar a impagabilidade de dívidas como alavanca na guerra de classe.
O objectivo político imediato desta guerra financeira na Grécia é substituir seu governo eleito (apoiado por uma notável votação no referendo de 5 de Julho de 61 a 39%) pelo controle de credores estrangeiros através de "tecnocratas", isto é, lobbyistas de bancos, factótuns e antigos administradores da Goldman Sachs. O objectivo a longo prazo é impor uma guerra contra o trabalho – na forma de austeridade – e contra o poder dos governos de determinarem sua própria política fiscal, política financeira e política pública regulamentar.

Felizmente, há uma alternativa. Aqui está o que é necessário. (esbocei minhas propostas numa apresentação perante o Parlamento em Bruxelas no dia 3 de Julho [2] , a seguir a uma defesa anterior na Iniciativa Delphi, na Grécia, reunida pela esquerda do Syriza na semana anterior. [3]

Uma declaração reafirmando os direitos de nações soberanas
Nações soberanas têm o direito de colocar o seu próprio crescimento à frente de credores externos. Nenhuma nação deveria ser obrigada a impor depressão crónica e desemprego ou a polarizar a distribuição da riqueza e rendimento a fim de pagar dívidas.

Toda nação tem o direito ao critério chave da nacionalidade: o direito de emitir sua própria moeda, cobrar impostos e escrever suas leis, incluindo aquelas que governam relações entre credores e devedores, especialmente os termos de bancarrota e anulação de dívida.

A lógica económica dita o que foi reconhecido no fim da década de 1920: Quando dívidas atingem o nível em que perturbam o equilíbrio económico básico e desordenam a sociedade, elas deveriam ser anuladas. Uma outra forma de dizer isto é que o volume de dívida – e os custos dos seus encargos – deve ser trazido a uma razoável capacidade para pagar.

Rejeitando a posição do "hard money" (realmente um "hard credor") de economistas anti-alemães como Bertil Ohlin e Jacques Rueff, Keynes argumentou que credores tês obrigação de explicar à Alemanha simplesmente como teriam possibilidade de pagar suas reparações. [4] Ele queria naquele tempo que a França, Grã-Bretanha e outros receptores de reparações deveriam especificar exactamente que exportações alemãs deveriam concordar em comprar. Mas hoje, os credores definem a capacidade de pagar de uma nação não em termos de como ela pode ganhar o dinheiro para pagar, mas ao invés que activos do domínio público ela pode liquidar naquilo que é um processo de bancarrota nacional. Países devedores devem deixar sua infraestrutura pública ser vendida a extractores de renda para criar uma economia de portagens neofeudal.

Sob o direito internacional, nenhuma nação está legalmente obrigada a fazer isto. E sob a definição moral de nacionalidade, elas não deveriam ser forçadas a assim fazer. O seu direito a resistir é o que as faz soberanas, afinal de contas.

Um fórum internacional para determinar a capacidade (ou incapacidade) de pagar dívidas
O que é necessário para colocar este princípio básico em prática é a criação de um novo fórum internacional para determinar (to adjudicate) quanta dívida pode razoavelmente ser paga – e quanto deveria ser anulada. Em 1929 o Plano Young (o qual substituiu o Plano Dawes para tratar mais racionalmente das reparações alemãs) apelou à criação de uma tal instituição – o que se tornou o Bank for International Settlements (BIS), em 1931, para travar a destruição económica da Alemanha fazendo com que suas reparações ficassem em consonância com a sua capacidade para pagar.

O BIS não desempenha mais tal papel, porque se tornou o principal local de reunião para os bancos centrais do mundo e, como tal, adoptou a linha rígida de que "todas as dívidas devem ser pagas" a que originalmente estava destinada a se opor.

Igualmente o FMI já não pode desempenhar este papel. Ele é irremediavelmente político. Apesar de a sua equipe técnica determinar em 2010-11 que as dívidas externas da Grécia não podiam ser pagas e portanto precisavam ser anuladas, seus chefes – primeiro Dominique Strauss-Kahn e a seguir Lagarde – actuarem em flagrante conflito de interesse em apoio aos banqueiros franceses que pediam o pagamento pleno, e aos pedidos do presidente Obama e do lobbyista da Wall Street Tim Geithner a insistirem em nenhum cancelamento parcial. Aquele foi o preço para o apoio da banca francesa à pretensão de Strauss-Kahn de candidatar-se à presidência da França, e recentemente ao apoio a Lagarde. Dado o poder de veto dos EUA pela Wall Street e à insistência dos ideólogos anti-trabalho da direita (habitualmente franceses) em serem nomeados chefes do FMI, é necessária uma nova organização representando a espécie de lógica económica delineada nos anos 1920 por Keynes, Harold Moulton e outros.

A criação de uma tal instituição deveria ser uma plataforma importante da política da esquerda europeia.

Uma lei da transmissão fraudulenta, aplicável a governos
O sector privado desde há muito tem leis que impedem prestamistas de emprestarem a um tomador mais fundos do que o devedor possa razoavelmente reembolsar no decorrer dos negócios. Se um prestamista avança, digamos US$10 mil como um empréstimo hipotecário contra uma casa que valha mais (digamos, US$100 mil), e então insiste em que o devedor pague ou perca a sua casa, os tribunais podem assumir que o empréstimo foi efectuado com este objectivo em mente e anular a dívida.

Da mesma forma, se uma companhia é atacada por prestatários carregando-a com títulos lixo de altos juros e a seguir toma o seu fundo de pensões e liquida activa para pagar suas dívidas, a companhia sob ataque pode processar sob [a lei] das transmissões fraudulentas. Assim fizeram na década de 1980.

Este estratagema empréstimo-arresto é o jogo que a Troika tem feito com a Grécia. Eles emprestam ao seu governo dinheiro que os economistas do FMI explicaram bastante claramente em 2010-11 (e reafirmaram este ano pouco antes do referendo grego) que não podia ser pago. Mas então veio o BCE e disse: "Liquidem vossa infraestrutura, vendam seus portos, seus direitos ao gás no Egeu e ilhas inteiras, a fim de obter o dinheiro para pagar o que o FMI e o BCE tem pago a franceses, alemães e outros detentores de títulos em seu nome (enquanto salvavam bancos de investimento e hedge funds dos EUA de perderem suas apostas em que dívidas gregas seriam realmente pagas).

A aplicação deste princípio requer que um tribunal internacional determina em que ponto aquele serviço de dívida se torna intrusivo e consequentemente cancele dívidas parcialmente.

Criação de Tesourarias como bancos centrais nacionais para monetizar gastos com défice
Os bancos centrais de hoje só emprestam dinheiro a bancos, com o objectivo de carregar economias com dívida. A exigência irracional dos banqueiros de impedir uma opção pública de criação de crédito nos seus próprios teclados de computador (do mesmo modo como aqueles bancos criam empréstimos e depósitos) destina-se simplesmente a criar um monopólio privado para extrair renda económica na forma de juros, taxas e finalmente arrestos de credores que incumprem – tudo garantido pelos "contribuintes".

O Banco Central Europeu não é adequado para este dever. Antes de mais nada, ele baseia-se na ideologia de que a criação de moeda pública é inflacionária. A realidade é que a criação de moeda pelo banco central apenas financiou a maior inflação da história moderna – a inflação de preços de activos no mercado imobiliário por hipotecas lixo, inflação de preços de acções por emissões de títulos lixo e a Facilidade Quantitative(Quantitative Easing) do banco central para criar a maior e mais rápida corrida no mercado de títulos da história. A experiência pós 1980 com bancos centrais removeu qualquer lógica moral ou económica do seu comportamento quando lobbyistas de bancos comerciais, defensores de privilégios especiais, desregulamentadores do crime financeiro e extremistas de direita bloqueadores de uma opção pública na banca a fim fazer com que serviços básicos estejam de acordo com seus custos reais. Em suma, se sistemas de banca comercial em praticamente todos os países tornaram-nos desindustrializado e perversos, seus possibilitadores foram bancos centrais.

O remédio é substituir estes bancos centrais com o que os antecedeu: Tesourarias nacionais, cuja função adequada é monetizar as despesas do governo dentro da economia. O princípio básico de funcionamento deveria ser que qualquer necessidade monetária e de crédito da economia deveria ser cumprida pelo gasto público e monetização, não por bancos centrais que criam crédito portador de juros para financiar a transferência de activos (ex.: hipotecas imobiliárias, buyouts e raids corporativos, arbitragem e jogos de casino capitalistas).

Sumário
Toda nação tem o direito de se defender contra o ataque – tanto o ataque financeiro como o ataque militar aberto. Isso faz parte do princípio da auto-determinação.

A Grécia, Espanha, Portugal, Itália e outros países devedores têm estado sob o mesmo modo de ataque como o do FMI e sua doutrina da austeridade que levaram a América Latina à bancarrota na década de 1970. O direito internacional precisa ser actualizado para reconhecer que a finança tornou-se o modo de guerra dos dias modernos. Seus objectivos são os mesmos: aquisição de terra, matérias-primas e monopólios. 


Um subproduto desta guerra foi tornar a rede financeira de hoje tão disfuncional que as nações agora precisam de um Quadro Limpo (Clean Slate) financeiro. Aquele que teve mais êxito em tempos modernos foi o Milagre Económico alemão – a Reforma Monetária dos Aliados após a II Guerra Mundial. Todas as dívidas internas alemãs foram anuladas, excepto dividas salariais de empregados à força de trabalho e balanços básicos. Posteriormente, em 1953, suas dívidas internacionais foram canceladas parcialmente. A lógica que levou a estes actos precisa ser reaplicada hoje.

Em relação especificamente à Grécia, líderes do Syriza disseram que querem salvar a Europa. Antes de mais nada, da irracionalidade económica destrutiva da eurozona ao não ter um banco central real. Este defeito foi construído deliberadamente na eurozona, a fim de forçar um monopólio de bancos comerciais e detentores de títulos suficientemente poderosos para ganhar o controle de governos, rejeitando a política e os referendos democráticos.

As regras da eurozona – os tratados de Maastricht e Lisboa – destinam-se a impedir governos de incidirem em défices orçamentais injectando dinheiro na economia para reviver o emprego. O novo objectivo é apenas resgatar detentores de títulos e bancos de maus empréstimos e mesmo de empréstimos fraudulentos, salvando-os a expensas públicas. As economias são obrigadas a voltarem-se para empréstimos da banca comercia a fim de obter o dinheiro que precisam para crescer. Este princípio precisa ser rejeitado pois viola um direito soberano básico dos governos e da democracia económica.

Uma vez que uma economia está financeira defeituosa por (1) não ter um banco central para financiar despesa governamental, e (2) pela limitação dos défices orçamentais do governo a apenas 3% do PIB, a economia deve contrair-se. Uma economia em contracção significará menos receitas fiscais e, portanto, défices no orçamento do governo mais profundos e elevação da dívida governamental.

O supremo assassínio é a exigência do BCE, FMI e CE de que governos paguem suas dívidas através da privatização da infraestrutura pública, recursos naturais, terra e outros activos no domínio público. Para agravar esta exigência, a Troika impediu a Grécia de vender pela oferta mais alta, se fosse a Gazprom ou outra companhia russa. A política financeira tornou-se portanto militarizada com parte da política de Nova Guerra-fria da NATO. Economias devedoras estão destinadas a vender a euro-cleptocratas – em termos financiados pelos bancos, de modo a que encargos de juros do acordo absorvam todos os lucros, deixando os governos sem muita receita fiscal. 
07/Julho/2015
[1] Este é o tema do meu livro Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (1972, new ed., 2002).
[2] O vídeo pode ser visto aqui: 
www.guengl.eu/... (apareço cerca do minuto 37).
[3] 
resistir.info/grecia/declaracao_delphi.html
[4] Resumo este debate entre Keynes e seus antagonistas em Trade, Development and Foreign Debt (new ed. ISLET 2009), chapter 16.

Ver também: 

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