quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

BRICS: UM NOVO FUNDO MONETÁRIO E UM NOVO BANCO DE DESENVOLVIMENTO

23 fevereiro 2015, Carta Maior http://www.cartamaior.com.br (Brasil)


Paulo Nogueira Batista Jr.*


Cabe aos Brics mostrar, em especial aos países em desenvolvimento,
 por que e para que queremos mais influência e poder decisório.

A escassez de recursos para financiar o desenvolvimento e os surtos recorrentes de instabilidade nos mercados internacionais, com efeitos mais intensos nas economias emergentes, conferem importância crucial à criação de mecanismos de autodefesa e financiamento. As instituições multilaterais sediadas em Washington – o FMI e o Banco Mundial – mostram grande dificuldade de evoluir e se adaptar à nova realidade internacional, marcada pelo peso crescente das economias emergentes. O G20 está semiparalisado desde 2011. Diante disso, os emergentes
vêm tomando, há algum tempo, as suas próprias providências em âmbito nacional e reforçando alianças entre si.

Os Brics – Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul – têm se destacado nesse campo. Desde 2012, esses países vêm negociando cuidadosamente, passo a passo, o estabelecimento de mecanismos independentes de financiamento e estabilização. Refiro-me ao Arranjo Contingente de Reservas (Contingent Reserve Arrangement – CRA) e ao Novo Banco de Desenvolvimento (New Development Bank – NDB). O primeiro será um fundo de estabilização entre os cinco países; o segundo, um banco para financiamento de projetos de investimento nos Brics e outros países em desenvolvimento.

O Brasil tem atribuído, desde o governo Lula, grande importância à atuação no âmbito dos Brics. No governo Dilma, a atuação conjunta com os demais Brics tornou-se uma das principais vertentes da política externa brasileira. Isso se tornou mais claro na cúpula dos Brics em Fortaleza, em julho de 2014, quando foram assinados os acordos que estabelecem o CRA e o NDB. Esses dois mecanismos são complementares às instituições multilaterais de Washington e podem inclusive cooperar com elas. Mas foram concebidos para serem autoadministrados e atuar de forma independente.

Enquanto diretor executivo do Brasil no FMI, participei dessas negociações desde o início, em 2012. Este artigo é um breve depoimento sobre o que foi alcançado nesses anos e a tarefa pendente de implementação do fundo e do banco dos Brics.
 
Alternativa potencial às instituições de Bretton Woods 
As instituições de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, existem há 70 anos. Em todo esse período, nada surgiu no campo multilateral ou plurilateral que possa ser caracterizado como alternativa a essas instituições, dominadas pelas potências tradicionais – os EUA e a União Europeia.

O CRA e o NDB, ainda embrionários, constituem a primeira alternativa potencial. A Iniciativa de Chiang Mai – na qual o CRA se inspira em parte – não desempenha esse papel, uma vez que a presença do Japão e da Coreia do Sul – aliados próximos dos EUA – funciona na prática como uma trava para o desenvolvimento independente da iniciativa. O Mecanismo de Estabilidade Europeu (European Stability Mechanism – ESM) tampouco representa uma alternativa ao FMI, uma vez que coopera estreitamente com o Fundo e chega a dominá-lo, no âmbito da chamada troika, na formulação, financiamento e acompanhamento dos programas de ajuste e reforma para países da área do euro. A super-representação da Europa no FMI facilita a adaptação da instituição à estratégia traçada em Berlim, Bruxelas e Frankfurt.

Arranjo Contingente de Reservas
O valor inicial do CRA é US$ 100 bilhões. A China entra com US$ 41 bilhões; Brasil, Rússia e Índia com US$ 18 bilhões cada; e a África do Sul com US$ 5 bilhões. Trata-se de um “pool” virtual de reservas, em que os cinco participantes se comprometem a proporcionar apoio mútuo em caso de pressões de balanço de pagamentos. O termo “contingente” reflete o fato de que, no modelo adotado, os recursos comprometidos pelos cinco países continuarão nas suas reservas internacionais, só sendo acionados se algum deles precisar de apoio de balanço de pagamentos.

Os limites de acesso de cada país aos recursos do CRA são determinados por suas contribuições individuais vezes um multiplicador. A China tem um multiplicador de 0,5; o Brasil, a Índia e a Rússia, de 1; e a África do Sul, de 2. O apoio aos países pode ser concedido por meio de um instrumento de liquidez imediata ou de um instrumento precaucionário, este último para o caso de pressões potenciais de balanço de pagamentos.

O CRA tem um sistema de governança em dois níveis. As decisões mais importantes serão tomadas pelo Conselho de Governadores (Governing Council), com os assuntos de nível executivo e operacional ficando a cargo de um Comitê Permanente (Standing Committee). O consenso é a regra para quase todas as decisões. Somente as decisões do Comitê Permanente relacionadas a pedidos de apoio e de renovação de apoio serão tomadas por maioria simples de votos ponderados pelo tamanho relativo das contribuições individuais.

Cada país pode obter a qualquer tempo até 30% do seu limite de acesso, desde que observe os procedimentos e salvaguardas do Tratado. Um acesso acima desse percentual está condicionado à existência de um acordo com o FMI.

As condições para aprovação de um pedido de apoio incluem: (i) não ter dívidas em atraso com os outros Brics ou suas instituições financeiras públicas nem com as instituições financeiras multilaterais; (ii) cumprir as obrigações com o FMI referentes ao Artigo IV (supervisão) e ao Artigo VIII (provisão de informações) do Convênio Constitutivo do Fundo; e (iii) assegurar que as obrigações assumidas pelo país que requisita apoio sejam não subordinadas, sendo classificadas, quanto ao direito de pagamento, ao menos pari passu com todas as outras obrigações externas.

Novo Banco de Desenvolvimento
O NDB financiará projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável não só nos Brics como também em outros países em desenvolvimento. Há uma grande carência de recursos para financiar o desenvolvimento da infraestrutura no mundo. O Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento não têm capital suficiente e continuam dominados pelas potências tradicionais. Os EUA e outros países desenvolvidos relutam em aumentar o capital e a capacidade de emprestar do Banco Mundial, mas querem ao mesmo tempo preservar o controle da instituição.

É para ajudar a cobrir esta lacuna que os Brics resolveram criar o seu próprio banco de desenvolvimento. O novo banco terá um capital subscrito de US$ 50 bilhões e um capital autorizado de US$ 100 bilhões. O capital subscrito será distribuído em parcelas iguais de US$ 10 bilhões entre os cinco membros fundadores, que terão assim o mesmo poder de voto. A sede será em Xangai. O primeiro escritório regional será em Johanesburgo e haverá também um escritório regional no Brasil.

O banco estará aberto à participação de outros países. Os países desenvolvidos poderão ser sócios, porém não tomadores de empréstimos. Já os países em desenvolvimento poderão ser sócios e captar recursos. Os Brics preservarão sempre pelo menos 55% do poder de voto total. Os países desenvolvidos terão no máximo 20% do poder de voto. Fora os Brics, nenhum país deterá mais do que 7% dos votos.

Mesmo que não se tornem sócios do banco, países em desenvolvimento poderão tomar empréstimos ou realizar outras operações com o banco em condições que serão especificadas pelo Conselho de Governadores.

Percalços do processo de negociação em 2012-2014
O processo de negociação do CRA e do NDB desde 2012 enfrentou alguns percalços do lado brasileiro. Vale a pena recapitulá-los brevemente, uma vez que podem se repetir na fase de implementação das duas iniciativas.

No caso do CRA, cuja coordenação esteve desde o início sob responsabilidade brasileira, o principal problema foi a relutância do Banco Central do Brasil, que temia comprometer reservas brasileiras em operações potencialmente arriscadas e atuou para retardar e esvaziar a iniciativa. Talvez a sua relutância tenha diminuído ao longo do tempo, em face da determinação da presidente da República de levar adiante a iniciativa e da consolidação do CRA como arranjo acompanhado de uma série de salvaguardas, inclusive vinculação com o FMI, como mencionado acima.

Apesar dos percalços, o Tratado que constitui o CRA é abrangente e detalhado, incluindo detalhes de natureza operacional. A Diretoria Executiva do Brasil no FMI, com apoio do Ministério da Fazenda, assumiu a tarefa de preparar as diferentes minutas do Tratado, representar as posições brasileiras, orientar e secretariar a negociação e fazer as simulações para definir os parâmetros do arranjo. Para esse trabalho nos valemos da nossa experiência no próprio FMI, dos acordos bilaterais de swap existentes e da experiência da Iniciativa de Chiang Mai.

No caso do NDB, o problema foi de outra natureza: a insuficiência da equipe negociadora brasileira que se resumiu a alguns poucos integrantes da assessoria internacional da Fazenda, com pouca experiência na área. O Brasil acabou não sendo adequadamente contemplado em definições básicas e na distribuição de cargos-chave do NDB. A China ficou com a sede; a Índia com a primeira presidência do banco; a Rússia com a primeira presidência do Conselho de Governadores e o Brasil apenas com a primeira presidência da Diretoria ou Conselho de Administração. Corre-se o risco de que o NDB venha a ser um banco essencialmente asiático, dominado pela China e pela Índia, com os demais Brics desempenhando papel caudatário.

O Brasil não chegou sequer a pleitear a sede do NDB, ficando sem fichas na negociação de alguns temas básicos. A Índia insistiu até o fim em sediar o banco e acabou levando a primeira presidência.

Não devemos cometer o mesmo erro na definição da sede do CRA. Cabe entrar na disputa com cidade competitiva e atraente – quem sabe o Rio de Janeiro? – e travar essa disputa desde o início da discussão. A China deseja sediar o CRA também em Xangai. Se prevalecer essa proposta, Xangai se transformaria na nova Washington – sede do banco e do fundo monetário dos Brics. O Brasil e os outros Brics apareceriam como mera linha auxiliar em duas iniciativas comandadas pela China.

O desafio da implementação
A assinatura em Fortaleza dos acordos que criaram um banco e um fundo monetário dos Brics alçou a cooperação entre os cinco países a um novo patamar. Agora, o grande desafio é a implementação das duas instituições. Essa fase de implementação vai definir o sucesso ou insucesso do CRA e do NDB, a sua maior ou menor importância prática e, em última análise, o êxito do próprio processo Brics.

Há que cuidar para que as duas instituições se estabeleçam de maneira sólida e não venham a ser deformadas ou enfraquecidas ao longo do processo de sua concretização. Há que atentar também para que elas entrem em funcionamento num futuro não muito distante, se possível no primeiro semestre de 2016. Demoras excessivas podem levar a que elas sejam ultrapassadas pelos acontecimentos e os Brics percam credibilidade.

Nesse sentido, foi importante a reunião dos líderes dos Brics na Austrália em novembro de 2014, presidida pela presidente Dilma Rousseff. Na ocasião, os líderes resolveram fixar metas para a implementação do CRA e do NDB, a serem alcançadas até a próxima cúpula dos Brics, que acontecerá na Rússia em julho de 2015.

Para o CRA, estabeleceu-se que o grupo negociador conclua as regras e procedimentos operacionais do Conselho de Governadores e do Comitê Permanente. Os bancos centrais ficaram encarregados de completar o detalhamento das operações de swap de moedas por meio das quais ocorrerá o aporte de recursos em caso de pressões de balanço de pagamentos.

Para o NDB, decidiu-se que o Presidente e os Vice-presidentes serão designados bem antes da cúpula da Rússia. Decidiu-se também designar um Conselho de Administração provisório incumbido de conduzir o estabelecimento do banco.

Significado dessas iniciativas 
Qual o significado dessas iniciativas? Se tivesse que resumir em uma frase, diria que estamos dando um passo significativo na direção de um mundo mais multipolar. Há traços comuns entre os cinco Brics, para além de todas as diferenças econômicas, políticas e históricas: são países de economia emergente, de grande porte econômico, territorial e populacional, que têm condições de atuar com autonomia. Esse não é caso da grande maioria dos demais países de economia emergente ou em desenvolvimento.

Os Brics não estão conformados com a atual governança internacional, que tem origem na estrutura de poder que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial e consagra representação e papel exagerados para as potências tradicionais. O mundo está mudando rapidamente. É crescente o peso dos países de economia emergente e em desenvolvimento. Mas as organizações internacionais continuam a refletir uma realidade política e econômica do século XX.

Cabe aos Brics, entretanto, na prática do dia-a-dia no nosso trabalho no FMI, no Banco Mundial, no G20 e nas instituições que estamos em vias de criar, mostrar aos demais países, particularmente aos outros países em desenvolvimento, por que e para que queremos mais influência e poder decisório. Que diferença faz para os países menores, mais frágeis ou de menor renda, que poder decisório seja transferido das potências tradicionais para os Brics? Se não o fizermos, nossa atuação conjunta será vista pelos demais como mera disputa de poder. 

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista e diretor executivo pelo Brasil e mais dez países no Fundo Monetário Internacional, mas expressa os seus pontos de vista em caráter pessoal.

E-mail: paulonbjr@hotmail.com; twitter: @paulonbjr
Créditos da foto: GovernmentZA / Flickr


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