sexta-feira, 19 de abril de 2013

Moçambique/NÃO VAMOS ESQUECER O TEMPO QUE PASSOU



8 de Abril de 2013, Radio Moçambique http://www.rm.co.mz

Por Miguel de Brito, Académico moçambicano

Nenhum de nós é ou deve ser culpado pelos pecados dos nossos pais (ou antepassados). Não temos que carregar cruzes de pecados que não cometemos. No entanto, não devemos nem podemos, nesta rejeição da herança da culpa, apagar a realidade em que viviam os nossos pais e avós e em que alguns de nós também ainda vivemos.


À data de independência de Moçambique viviam em Moçambique cerca de 200 mil branc...os de origem portuguesa. Muitos nascidos em Portugal, outros já nascidos em Moçambique, descendenetes de 2 ou 3 gerações também já aqui nascidas.

Se é verdade que nem todos maltratavam os negros, que muitos sentiam-se moçambicanos e não portugueses e que muitos lutaram, de várias formas, para pôr fim ao colonialismo, a grande maioria ou beneficiou diretamente do colonialismo ou, pelo menos, aceitou silenciosamente as práticas coloniais.

O bem-estar de que muitos brancos usufruíram e a riqueza que muitos brancos acumularam só foram possíveis graças às relações políticas, sociais e económicas que existiam entre a minoria branca e a maioria negra. Se em Moçambique não houve apartheid formal, a separação das raças estava institucionalizada a todos os níveis: nas zonas residenciais, no acesso à educação e à saúde, no acesso aos serviços e ao emprego. Para não falar do poder político, claro!
Quem achar que isto é um exagero é só consultar as centenas de álbuns fotográficos da época, que tantos orgulhosamente têm compartilhado aqui na internet, e ver quão branca era a vida social e económica de Moçambique na época. Ou ler os relatos do trabalho forçado, das palmatoadas, dos insultos racistas, etc, etc.

Entre 1974 e 1976, mais de 90% dos brancos residentes em Moçambique abandonaram o país. O mesmo aconteceu nas outras colónias portuguesas. A esmagadora maioria foi para Portugal e constituíu a chamada comunidade dos retornados. Outros foram para a África do Sul e para o Brasil.

Desde essa altura até hoje, desenvolveu-se e cristalizou-se uma "narrativa retornada" sobre a vida colonial e sobre o período 1974/75. É uma narrativa ao mesmo tempo romantizada e amarga, saudosista e reivindicativa, seletiva e manipuladora. O principal fio dessa narrativa, independentemente de se aplicar a Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, é que os brancos nas colónias desenvolveram e civilizaram as colónias, criaram e deixaram riqueza, trataram bem os pretos e tiveram que fugir porque os pretos (comunistas) os iam matar e roubar. O outro fio entrelaçado desta narrativa é sobre a boa vida das colónias, onde todos tinham casas grandes, muitos criados, praias, boa comida, o Sol, etc.

Esta é sobretudo uma narrativa falaciosa, cega e filtrada. A vida de uns só era boa porque a vida de muitos era francamente má. Esta é uma correlação indissociável. Os pretos nunca foram vistos como mais do que seres subordinados, por vezes "acarinhados", muitas vezes humilhados e violentados na sua dignidade humana. Esta frase que encontrei num depoimento é ilustrativa do pensamento dessa época e que está subjacente a toda a "narrativa retornada": "o branco com seu espírito empreendedor e conhecimento técnico, o negro como trabalho braçal".

É exactamente essa correlação e essa relação entre brancos e negros na sociadde colonial que a "narrativa retornada" ignora e rejeita. Esta narrativa tem sido reproduzida de pais para filhos, de geração para geração, ao ponto de influenciar os que nunca cá viveram, nem são descendentes de que cá viveu.

Hoje é comum ouvir: eu também sou moçambicana, também lá nasci e hoje estou de volta para ajudar esta terra que me viu nascer. A pergunta que falta fazer é: o que levou a sua família a abandonar Moçambique em 1974/75? A honestidade da resposta a esta pergunta é crucial para começarmos a curar os pecados do colonialismo e o veneno da "narrativa retornada". A verdade é que a esmagadora maioria dos retornados de Moçambique abandonaram o país porque não queria ser "governada por pretos"!
Porquê? Aqui encontramos uma mistura de racismo, medo de represálias (se eram todos tão bons para com os pretinhos, tinham medo de quê?) e pavor do chamado comunismo. A resposta mais usada em geral é que os "turras" iam "matar-nos e violar as nossas mulheres, por isso tivemos que fugir e deixar tudo para trás".

A História mostra quão isto é falso. Talvez tenham ficado em Moçambique uns 20 mil brancos de origem portuguesa. Muitos tornaram-se ministros, diretores nacionais, diretores de escolas, diretores de hospitais, diretores de empresas, etc. Este não é, de certo, um quadro de vingança, retaliação, perseguição. Aliás, este "acarinhamento" dos "brancos que ficaram" veio criar problemas à liderança da FRELIMO, mais tarde, mas isso são outros quinhentos.
Posto isto tudo, vamos ser honestos: se os que agora chegam (ou regressam), não têm culpa dos que os seus antepassados fizeram, pelo menos reconheçam o que eles fizeram, que deixaram cicratizes, que nunca reconheceram o mal que fizeram e que, pelo contrário, até hoje acham-se injustiçados e incompreendidos. Sem isso, nunca haverá reconciliação. Pois é da necessidade de reconciliação que se trata. E como bons católicos, de certo a maioria dos portugueses está familiarizada com o conceito do perdão e da redenção com base na confissão.

Imagem de Ricardo Rangel: Menino guardador de gado no sul de Moçambique, a quem chamavam “o oito” porque tinha uma marca na testa com a forma de um 8 deitado. Um dia, Ricardo Rangel soube que um criador de gado colonialista tinha marcado o seu jovem guardador de gado com o ferro em brasa, que usava para marcar o seu gado, por ele ter perdido um dos seus bois. Então, Rangel foi para Changalane e procurou o jovem durante dois dias até finalmente o encontrar. Fotografou-o. O patrão do menino queria dar-lhe um tiro, mas Rangel, armado com a sua máquina fotográfica, não teve medo das armas do patrão daquele menino.Como Ricardo Rangel disse, a fotografia foi sempre a sua arma para defender, dignificar e eternizar o povo.

Nenhum comentário: