quinta-feira, 3 de junho de 2010

Brasil: Cultura/Glória partida ao meio, um romance dos anos de chumbo

2 junho 2010/Vermelho http://www.vermelho.org.br

A editora Sete Letras lançou no final do ano passado “Gloria partida ao meio”, primeiro romance de Paulo Martins. O autor é baiano e antigo militante da luta contra a ditadura militar. Muito jovem ingressou no PCdoB e fez parte da primeira turma enviada à China para fazer cursos de preparação política e militar, ainda em 1964. Dois anos depois adere à Ala Vermelha e à luta armada urbana.

Esse belo romance trata um pouco da conturbada história e paixões desses jovens combatentes. O Vermelho disponibiliza abaixo a apresentação feita pelo escritor e jornalista Hélio Pólvora:


Glória partida ao meio

Por Helio Pólvora *

O título, conforme me observou Valdomiro Santana, lembra um filme de John Ford, com a diferença que, neste romance de Paulo Martins, a glória partida se refere não a um sentimento de exaltação, patriotismo e memória histórica, mas à Glória — aquela guerrilheira metralhada na rua, após o estouro do “aparelho” de uma ala do PCdoB que havia aderido à luta armada, em São Paulo.

Mas este romance de Martins não deixa de ser, a seu modo, um faroeste protagonizado por um bando de idealistas que procura antecipar a revolução desejada e jamais anunciada, e os militares que empolgaram o poder e o sustentaram pela repressão e tortura.

É mais um testemunho da resistência ao golpe militar de 1964. Sem preocupação documental, no entanto, porque Martins, escritor criativo e não historiador, preferiu trabalhar os fatos à claridade difusa da ficção. Sentidos sob o impacto da emoção pessoal, através do personagem-narrador Ricardo, os fatos adquirem então uma verdade mais próxima, palpável — e mais dolorosa, porque mais humana.

Ricardo está na clandestinidade. Um estratagema o tira de uma cadeia do DOPS, no Rio de Janeiro, e ele se refugia em São Paulo, em casa de simpatizantes. O escritor logo mostra pulso firme no início de uma narrativa que, veloz e sôfrega, arrastará o leitor até o desfecho.

O capítulo que introduz Florence (presumível lembrança de André Malraux, que em La Condition humaine descreve o levante de Xangai) sustenta notável debate sobre a canção popular revolucionária de Jacques Brel, em especial o “Ne me quitte pas”, vista como um desejo de afirmação (a conquista da causa suprema do amor), antes que um lamento servil de apaixonado. Nas páginas seguintes, lê-se pequeno e vigoroso ensaio sobre o teatro de Brecht como instrumento de reação antiburguesa.

Nasce uma história de amor atormentado pelo cerco da polícia secreta. A célula que Ricardo ajudou a instalar desmorona, e alguns de seus companheiros amargam uma temporada no inferno da tortura na Rua Tutóia. Poucos conseguem escapar vivo. Seguem-se cenas de caçada humana, metralha, fugas, esconderijos. Ricardo viveu tudo isso e, como personagem de um romance realista, narra sem rancor, sem sectarismo, com a resignada simplicidade dos que conscientemente arriscaram — e perderam.

A par dos fatos expostos, impressiona em Glória partida ao meio o tom de contínua inquirição. O personagem de Martins se questiona, se condena, se absolve, se deixa matar e encontra meios de reviver. Ele é, como diria Lermontov, um herói do nosso tempo: anônimo e altruísta, escravizado a um ideal que não tardará a se diluir, mas que não o deixará vazio e inanimado, alerta que sempre esteve aos rumos e contradições do seu tempo, à precariedade inata do ser, à inconstância das idéias.

O revolucionário Ricardo abre caminho — o seu caminho. Sabe, como disse o poeta Antonio Machado, que “el camino se hace al andar”. E que não há retorno. Sob este aspecto, o romance se oferece como um repositório de indagações, descobertas, análises de teor existencial, estudos de personalidade e discussão de circunstâncias. Convive lado a lado com uma crônica de acontecimentos que é nossa, que nos marcou para sempre e é o ferrete de toda uma geração.

Quem foi jovem e participou, ainda que de forma discreta, do seu foco narrativo, o lerá para não mais o esquecer. Um belo romance o de Paulo Martins, cheio de vida e rebeldia, em tudo e por tudo diferente dos dessangrados e esotéricos romances dos nossos dias.

*Hélio Pólvora é jornalista e escritor.

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