quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

"O BRASIL NÃO PODE ENTREGAR UM HOMEM INOFENSIVO A UM GOVERNO FASCISTA"

"Berlusconi tenta reescrever a história da Itália. Um dos sintomas é a situação de Cesare Battisti". As palavras são de José Luís Del Roio, 65, ex-senador (2006-2008) pelo Partido da Refundação Comunista, da Itália. Brasileiro, de Bragança Paulista, ele vê na vida política do país sinais do renascimento do fascismo. "É o governo mais direitista da Europa", diz ele, em entrevista à Carta Maior.

Gilberto Maringoni

9 fevereiro 2009/Agência Carta Maior http://www.cartamaior.com.br

Dirigente do Fórum Mundial das Alternativas, uma das principais organizações do Fórum Social Mundial, e residente em Milão há 36 anos, Del Roio concedeu a seguinte entrevista à Carta Maior, em São Paulo.

Carta Maior - Como o Sr. vê a política atual do governo Berlusconi em relação aos imigrantes?

Del Roio - A Itália é um país com uma certa homogeneidade histórica e social. Há muitas culturas que estão ali há dois ou três mil anos. Foi criada, ao longo dos séculos, uma aparência de país branco e cristão, ou seja, católico, apostólico e romano. Além disso, a Itália foi o último país europeu a reverter a onda imigrantista. Foi apenas a partir de 1973 que o fluxo de pessoas que entravam foi maior do que o número dos que saíam da Itália. Pois este país, quando começa a receber pessoas de culturas diferentes, tem uma reação estranha. Esses diferentes são na maior parte dos casos, vizinhos albaneses, eslavos, muçulmanos, africanos negros e por aí vai. A reação se acentuou quando a direita chegou ao poder, com uma conduta marcadamente xenófoba. Ela atualiza o discurso nazista clássico, que se voltava contra judeus e ciganos. Agora os indesejados são vários. São os ciganos, os de pele escura, os que professam outros credos etc. O curioso é que os ciganos não são estrangeiros. Alguns estão lá há 600 anos. Mas com um discurso que vincula a criminalidade e a insegurança ao forasteiro, a direita colocou cerca de 4 milhões de estrangeiros que vivem no país na defensiva. Eles representam cerca de 8% da população. Não é uma proporção desmedida. Mas o discurso pegou.

CM - Por que?

Del Roio - Há um aspecto decididamente canalha nas orientações da direita. A maioria dos imigrantes trabalha muito e busca acumular pra voltar à sua terra. Há uma difusa idéia empresarial de que quanto menos o imigrante for protegido pela legislação social, mais ele trabalhará. Não há limitação de jornada, registros e direitos e existe o medo constante da deportação. É gente que se esfalfa na agricultura, na construção civil e em serviços pesados, sem proteção alguma. Assim, ao mesmo tempo em que se aumenta a exploração legal, os imigrantes são jogados na ilegalidade. "Se é ilegal, é criminoso". Este é o raciocínio raso. O ruim é que isso acontece com a conivência de antigas lideranças de esquerda.

CM - Mas há uma aversão ao imigrante por parte da população?

Del Roio - Em geral, o italiano não aceita o trabalhador imigrante. Existe lá, como em toda parte, a ambição de que a cada geração, o padrão de vida melhore, que os filhos vivam com mais conforto que os pais. A maioria dos italianos trabalha na informalidade, em empresas de informática, em call centers etc. No caso dos jovens, a situação se agrava. Não terão aposentadoria . Vivem, na média, pior que os pais, sem esperanças de mudar, o que cria um desespero latente. Pois bem, este jovem desalentado vê muitas vezes o imigrante melhorar um pouco de vida. Está feito o caldo de cultura de que se vale a direita em sua campanha. Esta é a base social que Berlusconi vai solidificando. Mas ela não é homogênea, ela também é fragmentada e separatista em muitas de suas manifestações políticas. A Liga Norte, partido de direita, quer se livrar do sul da Itália e criar um novo país. Seus ministros no governo recusam-se a cantar o hino nacional em cerimônias oficiais.

CM - Como essa situação evolui com o aprofundamento da crise econômica?

Del Roio - É aí que entra o poder de Berlusconi nos meios de comunicação. Não se fala do desemprego, apesar de termos na Itália, 8 milhões de famílias na linha de pobreza, algo como 35% da população, segundo dados do Istati (Istituto Nazionale di Statistica). Ao invés da crise, os meios de comunicação falam o dia inteiro de ciganos, de crimes e se o Kaká vai jogar ou não. O controle é total. Temos o governo mais direitista da Itália, desde Mussolini. Não há oposição política no Parlamento.

CM- Mas como está a opinião pública? O país segue dividido ao meio, como nas eleições anteriores, com uma vantagem apertada para um dos lados?

Del Roio - O Berlusconi teve uma maioria apertada, mas trata sempre de alterar as leis eleitorais. Isso se agrava pelo fato de o eleitorado progressista ter aumentado seu abstenseísmo. As pessoas simplesmente se desanimam e não vão votar. Isso dá maioria à direita. Nossa tarefa maior é criar uma força política pelo voto.

CM - Por que, ao contrário do que ocorre na América Latina, a Europa pendeu para a direita nos últimos anos?

Del Roio - A Europa tem uma história de fragmentação, que vem do feudalismo. Quando a situação piora, cada um volta-se para seu pedaço. Alguns países, como a Itália e a Espanha, vivem tensões separatistas reais. Mas há reações importantes. O Partido de Esquerda, na Alemanha (Die Link), cresce a cada eleição. Na França, o bloco anticapitalista (Comunistas, Liga Comunista Revolucionária e outros), em conjunto, deve chegar a 15% do eleitorado, o que não é pouca coisa, nas condições atuais. Mas o fato é que o movimento social não tem ainda conseguido traduzir suas ações na disputa institucional. É duro ter de assistir às teorizações sobre a vantagem da articulação molecular, da multidão, do discurso antipartido etc. Se olharmos para a América Latina, vemos que, em Belém, houve uma grande convergência entre partidos, movimentos sociais e ativistas muito jovens.

CM - Como o Sr. vê o caso do pedido de extradição de Césare Battisti?

Del Roio - Ele se insere neste quadro de direitização da Europa e da Itália em particular. Há uma tentativa atual de se reescrever a história. O que deu base à vida institucional italiana no pós-Guerra, após 1945, foi a insurreição armada anti-fascista. A Constituição de 1948 se autodenomina antifascista. O desenvolvimento do país nas últimas seis décadas se dá sobre o sentimento antifascista da população. Agora, que eles voltam ao poder, querem reinterpretar este passado. Dizem que a resistência armada, os partizans, eram todos terroristas! Proclamam que Mussolini foi um grande personagem. O 25 de abril, feriado nacional italiano que marca a libertação do país contra o fascismo, tenta ser reavaliado por eles.

Querem transformar a data numa espécie de lembrança de todos os mortos, que seriam iguais, os resistentes e os fascistas. Mas não são! A história italiana subseqüente foi pontuada por atentados fascistas, como os da Praça Fontana, em 1968, o atentado de Brescia, em 1973, o da estação ferroviária de Bolonha, que resultou em 300 mortos, em 1980. Houve também ações de luta armada por parte de setores da esquerda, totalmente defensivos, mas errados. Não se justificavam. Havia um partido comunista forte e um movimento sindical atuante. Não poderia haver luta armada! O erro maior foi o assassinato de Aldo Moro, da esquerda da Democracia Cristã, que levou o partido ainda mais à direita, em 1978. Era preciso estar ruim da cabeça para se fazer algo assim.

CM - Como isso é visto hoje?
Del Roio - Quando o fascismo volta, busca apagar seus crimes e acertar as contas com a esquerda. Aí entra o Battisti, que nada tem com isso tudo. Era membro insignificante de um grupúsculo insignificante. Recebeu asilo na França de Miterrand e de Chirac. Por que? Por existir na Itália uma lei de delação premiada, feita para se perseguir a Máfia e que é usada na política.

CM - Mas Battisti não é um criminoso comum?
Del Roio - Quem diz que ele é um político não é apenas a esquerda. O ex-chefe da repressão na Itália, o ex-Ministro do Interior, ex-Primeiro Ministro e ex-Presidente da República (1985-1992), o democrata cristão Francesco Cossiga o classifica como um "adversário político".

CM - Como o sr. vê o comportamento do governo brasileiro, de se negar a extraditá-lo?

Del Roio - O Brasil encontrou um ótimo escritor, que viveu 15 anos na França, acusado na Itália. O que o governo daqui deveria fazer? Entregá-lo para passar o resto de seus dias na cadeia? A tradição do Estado brasileiro é a de dar asilo. Trata-se de um homem inofensivo diante de um Estado agressivo, como o italiano. Não vejo alternativa. O governo brasileiro cumpre um ato absolutamente soberano, pautado pelo Direito Internacional. Já concedemos asilo a figuras inomináveis, como Alfredo Stroesssner, ditador paraguaio, Marcelo Caetano, líder salazarista em Portugal e outros. Eram condenados políticos em seus países. Eram criminosos. Não nos iludamos. Repito: a Itália está preocupada em reescrever sua história. É bom que os defensores da extradição saibam que estão apoiando uma atitude oriunda do fascismo. O governo Berlusconi tem de ser isolado internacionalmente.

CM - Mas ele conseguiu o apoio do Parlamento Europeu para pedir a extradição...

Del Roio - Aquilo foi a expressão do fracasso. O Parlamento tem 785 membros. A votação foi de 46 votos a favor e 8 contra a extradição. Dos 78 italianos, apenas 6 estavam presentes, em um final de sessão. Ridículo. Não tem representatividade ou efeito prático algum.

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