sábado, 26 de abril de 2008

MAIS UMA VITÓRIA DOS SETORES POPULARES SUL-AMERICANOS

Luis Alberto Gómez de Sousa 26 abril 2008 / Carta Maior / http://www.cartamaior.com.br

Com figuras bem diferentes, mas em grandes linhas numa mesma direção, temos uma equipe de governantes inédita, no Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Venezuela a agora no Paraguai, ainda que possamos fazer reparos aqui ou ali a um ou outro.

Data: 22/04/2008

Faz alguns meses escrevi que o protagonismo popular ia ameaçando cada vez mais as elites latino-americanas retrógradas. Temos uma nova vitória dos setores populares, fechando o cerco no Mercosul e quase cobrindo o mapa da América do Sul. A alegria pela eleição de Fernando Lugo é semelhante à que sentimos com Lula em 2002 e, mais adiante, com Evo Morales na Bolívia. Com figuras bem diferentes, mas em grandes linhas numa mesma direção, temos uma equipe de governantes inédita, no Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Venezuela e agora no Paraguai, ainda que possamos fazer reparos aqui ou ali a um ou outro. Peru é um caso mais complexo, onde o partido no governo, o APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), que nascera em 1924 com uma vocação continental, foi perdendo suas intuições originais. Mas não podemos esquecer que, nas últimas eleições peruanas, um mestiço, Ollanta Humala, ainda que de perfil político pouco nítido, chegou a ameaçar o poder branco tradicional.
Fica isolada a Colômbia, com uma violência que vem de longe, prisioneira de uma guerrilha anacrônica, dos para-militares seus inimigos complementares e de um narco-tráfico em alianças com ambos. Mas a região sul-americana, com exceções que não invalidam a regra, adquire um rosto novo, com o povo pobre entrando como sujeito determinante do processo político. Já meses atrás, Lugo declarou: “o povo deve ser protagonista”. Tão diferente da União Européia que, se por um lado reelegeu Zapatero, por outro deu a vitória ao histriônico Sarkozy ou, recentemente, ao magnata Berlusconi.
O Paraguai esteve em mãos de uma oligarquia autoritária, voraz e corrupta desde sempre, ou pelo menos desde os tempos da chamada “guerra grande”, quando a tríplice aliança praticamente o destruiu. A vitória de Lugo sinaliza um novo e profundo processo histórico de construção, ou refundação do país. E começa logo com a exigência de recuperar uma plena soberania energética diante de seus visinhos Brasil e Argentina. “Yacyretá e Itaipu são tratados leoninos, injustos”, declarou meses atrás.
Provavelmente veremos novamente, pela imprensa, ex-chanceleres e outros arautos de uma linha dura, denunciar sinais de debilidade do governo de Lula e de seu ministro Celso Amorim. Todos eles aceitavam docilmente serem suseranos dos Estados Unidos e, num mecanismo de transferência compensatória, só se sentiam cômodos diante da doutrina golberiniana do “satélite privilegiado”, pela qual havia que tratar os menores como fazia conosco o poder imperial.
Nosso torneiro mecânico presidente e o índio cocalero, iniciaram uma diplomacia totalmente diferente, às vezes com momentos ásperos e difíceis, mas sempre respeitadora dos direitos dos mais fracos. Agora se abrirá certamente um período de discussões, para a revisão do tratado de Itaipu Binacional ou, pelo menos, chegar logo a uma remuneração adequada da energia comprada pelo Brasil ao Paraguai, como indicou Celso Amorim. Este tratado foi negociado a partir de 1966 e assinado em 1973, em pleno governo autoritário entre nós e com políticos venais e autoritários no país vizinho. Aliás, em 1979, houve um acordo tripartite entre Brasil, Argentina e Paraguai sobre água e energia, os três com ditaduras militares.
Para Lugo, não há que esperar 2027, data prevista para a revisão do tratado com o Brasil, mas o fará por via diplomática, num estilo possivelmente diferente do que teve Evo Morales com o gás e o petróleo.
Lugo indica que não seguirá nenhum modelo alheio: “Creio que hoje, na América Latina, não há paradigmas comuns unificados... Temos de fazer nosso próprio caminho para nos integrar e não ser uma ilha entre governos progressistas” (entrevista ao jornal espanhol El País, publicada em 18 de abril). Ao mesmo tempo, tem declarado sua estima plural tanto por Lula, Evo Morales, Rafael Correa, ou Michelle Bachelet, quanto por Hugo Chávez. Temos diante de nós um tempo fecundo e criativo, não isento de tensões normais e indispensáveis, nas novas relações entre o Brasil e o Paraguai.
A escolha de Fernando Lugo
Gostaria, numa segunda parte, de refletir sobre o caso de Fernando Lugo, que trocou o episcopado por uma ação política, fundando a Aliança Patriótica para a Mudança e, depois, por uma candidatura a presidente. Um jornalista da grande imprensa, logo no momento da vitória, insistiu em chamá-lo religioso ou bispo, ao que parece sob o pretexto de que o Vaticano não aceitou seu pedido de secularização ao sacerdócio. Como se as decisões relevantes fossem apenas as que vêm unilateralmente de cima.
Para entender um pouco o tema, temos de examiná-lo nas reflexões dos teólogos dos últimos anos, mas também na história concreta. Uma visão piramidal da Igreja Católica, que vigorou no segundo milênio, desce do episcopado (e ali no alto a primazia do bispo de Roma), passa ao sacerdócio mais abaixo, depois vêm a vida religiosa e os institutos seculares, para chegar finalmente aos chamados leigos e leigas, que curiosamente, nesse elenco tradicional, são a clara maioria, especialmente estas que, numa Igreja machista, vão colocadas em último lugar. Tudo muda se invertermos essa pirâmide, na linha do que o concílio Vaticano II chamou “o povo de Deus”.
Como ponto de partida, somos todos iguais, cristãs e cristãos batizados, do papa à mais simples e humilde fiel. Mas dentro da estrutura eclesial há vários serviços, ou em linguagem católica, ministérios. Uns tem uma missão específica na sociedade, outros missões próprias na instituição eclesiástica.
Porém as fronteiras não são fechadas nem rígidas. Valem alguns exemplos do caso brasileiro. Nos anos 50 e 60, alguns membros da Ação Católica aceitaram trabalhar na estrutura eclesial interna durante alguns anos, organizando e coordenando movimentos de apostolado leigo, a quem a Igreja conferia um “mandato”, isto é, um reconhecimento especial. Os que aí participamos, éramos conhecidos, na linguagem da época, como “permanentes”, por uma dedicação temporária, mas quase exclusiva, a essas tarefas.
Fui, naqueles anos, dirigente nacional e internacional da Ação Católica. Mas nunca deixamos de ser estudantes, operários ou profissionais, seguimos sendo cristãos comuns, leigos como se diz até agora, numa expressão que não me agrada, por ser negativa, igual a não-clérigo. Nessa condição, casamos e constituímos nossas famílias. Entretanto, alguns sentiram uma vocação especial para a vida religiosa ou para o sacerdócio.
Da antiga Associação dos Universitários Católicos (AUC), que precedeu a Juventude Universitária Católica (JUC), Jorge Dale tornou-se Frei Romeu, frade dominicano, por muitos anos admirável assistente nacional da JUC. Outros jovens profissionais se fizeram beneditinos, como José Carlos Isnard, depois D. Clemente, hoje bispo emérito (aposentado) de Nova Friburgo; um médico se tornou monge no Rio e abade em Olinda, D. Basílio Penido, outro, depois de viúvo, também monge no Rio e logo abade na Bahia, D. Timóteo Amoroso Anastácio. Maria de Lourdes Ribeiro de Oliveira passaria a ser Dona Luzia, monja e abadessa em Belo Horizonte, Lia Amoroso Lima, dona Maria Teresa, monja e abadessa em São Paulo, Maria Sílvia Penido, irmã Letícia, beneditina em João Pessoa.
Para não ficar só de um lado do espectro das opções e sensibilidades ideológicas, o jovem Lauro Barbosa seria o monge poeta D. Marcos e Flávio Bittencourt, que acaba de falecer, o inflexível D. Estêvão. Os homens normalmente, mas não necessariamente, acediam ao sacerdócio. Carlos Alberto Libânio Cristo, da equipe nacional da Juventude Estudantil Católica, seria o dominicano Frei Betto, que não quis receber o sacramento da ordem. São alguns exemplos de militantes do “laicato” católico que se fizeram sacerdotes, religiosos ou religiosas.
Em sentido contrário, vários sacerdotes, assistentes eclesiásticos dos movimentos, pediram a secularização, isto é, voltar a ser cristãos comuns. Isso se deu também com figuras importantes do episcopado, em vários países, como Jerônimo Podestá, valente defensor dos direitos humanos em Avellaneda, na Argentina, que deixou o episcopado e se casou. Os processos de secularização foram relativamente ágeis com Paulo VI, lentos e difíceis com João Paulo II. Assim, as situações no mundo laical e no religioso ou sacerdotal, tiveram diferentes vias e direções em dois sentidos.
A Igreja Católica não teve problemas quando alguns sacerdotes assumiram mandatos políticos. Viu com bons olhos Monsenhor Arruda Câmara fundar o PDC e lutar no Legislativo, por anos, para impedir uma lei do divórcio. Não levantou dificuldade em aceitar o direitista padre Godinho como senador. A situação foi diferente quando o monge e poeta Ernesto Cardenal e seu irmão, o jesuíta Fernando, se tornaram ministros do primeiro governo sandinista. Receberam fortes reprimendas, Ernesto em público, com o papa João Paulo II invetivando-o dedo em riste, com nosso monje sorridente, sem entender o que se passava.
Fernando Lugo teve, sob esse ponto de vista, uma atitude clara e exemplar. Fôra por alguns anos, desde 1994, bispo em San Pedro e ali esteve sempre a serviço dos setores populares mais pobres, como Leônidas Proaño, em Rio Bamba, no Equador, bispo dos indígenas, que conheceu de perto e a quem tanto admirou. Entre nós, podemos mencionar, entre outros, Pedro Casaldáliga, Erwin Krautler ou Tomás Balduíno, na linha da teologia da libertação latino-americana e dos encontros de Medellín (1968) e de Puebla (1979).
Mas Lugo, num certo momento, sentiu que poderia servir melhor a seu país entrando para a política. Entretanto, não quis embaralhar funções. Referindo-se à experiência centro-americana, declarou no jornal El País, citado acima, em entrevista publicada dois dias antes de sua vitória eleitoral: “Quando a Igreja, como instituição, optou por identificar-se com um modelo temporal, equivocou-se. Isso aconteceu com os padres nicaragüenses durante o sandinismo”.
No seu caso, não quis confundir sua situação anterior de bispo com a de futuro candidato a presidente. Claro que o episcopado fica na sua história e nas raízes de sua experiência. Sabemos também que, na Igreja Católica, a ordem sacerdotal e a episcopal permanecem como sacramentos (“sacerdos in aeternum”). Mas o sacerdote ou bispo pode perfeitamente ser dispensado de seu exercício. Foi nessa direção que agiu Lugo, solicitando dispensa do episcopado em 2005, quando se tornou bispo emérito e do sacerdócio em 2006, para servir seu país em outro lugar social e eclesial, como simples cristão.
A reação romana, nesse último caso, foi de irritação, ao seu entender, pelo inusitado da demanda. Como renunciar à dignidade de um poder eclesiástico, por um simples poder temporal? Suspendeu Lugo indefinidamente de suas funções (“a divinis”), mas sem lhe conceder a dispensa do sacerdócio. Agiu como uma burocracia defendendo corporativamente os poderes internos de sua instituição, apoiando-se em regulamentos e códigos e não com sensibilidade pastoral. Faltou-lhe abertura para entender a importância do gesto de um cristão até então clérigo, mas que desejava exercer seu serviço em outro domínio, com o extremo cuidado de não confundir papeis, por profunda convicção, lealdade e transparência para com sua Igreja.
Fernando Lugo seguiu adiante, deixou o sacerdócio e agora se tornou o novo presidente paraguaio. Depois de ter votado, diz a imprensa, foi à missa dominical como simples cristão. Não foi mencionado se participou da comunhão. Possivelmente não, estando suspenso sem prazos.
O importante é que temos de deixar de vê-lo, de uma vez por todas, como ex-bispo, como gostam de proclamar os meios de comunicação, numa atitude no fundo clerical. Há um clericalismo de direita que se escandaliza, como há um subreptício clericalismo progressista que se alegra com a vitória do que consideram um ex-bispo.
Lugo é agora simplesmente um cristão que se elegeu presidente e que, num gesto pessoal de liberdade, suspendeu definitivamente suas antigas prerrogativas eclesiásticas, sem esperar uma autorização de cima que certamente não viria. Estas prerrogativas e o poder inerente ficaram para trás. Ao ser eleito declarou: “sou um homem de fé e de espiritualidade”, agora como um simples fiel. E noutra ocasião: “se minha atitude e minha desobediência às leis canônicas causaram dor, peço perdão” (Folha de São Paulo, 22-4-2008). Como não alegrar-nos com um presidente que deixou no passado sua situação de bispo e agora é apenas um cristão, mas acima de tudo um cristão e um cidadão cuidadoso e responsável?
Trata-se de um presidente de pertença cristã, em diálogo pluralista com outros estadistas cristãos, de outras religiões ou sem religião. O cristianismo, como para qualquer fiel, poderá ajudá-lo a discernir, a iluminar sua consciência, mas as decisões serão tomadas como um homem livre e com a enorme responsabilidade que tem, a partir de agora, de refazer, com sua equipe, a vida paraguaia.

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